Poemas de Fernando Pessoa


LiberdadeAi que prazer 
Não cumprir um dever, 
Ter um livro para ler 
E não fazer! 
Ler é maçada, 
Estudar é nada. 
Sol doira 
Sem literatura 
O rio corre, bem ou mal, 
Sem edição original. 
E a brisa, essa, 
De tão naturalmente matinal, 
Como o tempo não tem pressa... 

Livros são papéis pintados com tinta. 
Estudar é uma coisa em que está indistinta 
A distinção entre nada e coisa nenhuma. 

Quanto é melhor, quanto há bruma, 
Esperar por D.Sebastião, 
Quer venha ou não! 

Grande é a poesia, a bondade e as danças... 
Mas o melhor do mundo são as crianças, 

Flores, música, o luar, e o sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca. 

Mais que isto 
É Jesus Cristo, 
Que não sabia nada de finanças 
Nem consta que tivesse biblioteca... 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Vaga, no Azul Amplo SoltaVaga, no azul amplo solta, 
Vai uma nuvem errando. 
O meu passado não volta. 
Não é o que estou chorando. 

O que choro é diferente. 
Entra mais na alma da alma. 
Mas como, no céu sem gente, 
A nuvem flutua calma. 

E isto lembra uma tristeza 
E a lembrança é que entristece, 
Dou à saudade a riqueza 
De emoção que a hora tece. 

Mas, em verdade, o que chora 
Na minha amarga ansiedade 
Mais alto que a nuvem mora, 
Está para além da saudade. 

Não sei o que é nem consinto 
À alma que o saiba bem. 
Visto da dor com que minto 
Dor que a minha alma tem. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Teus Olhos EntristecemTeus olhos entristecem 
Nem ouves o que digo. 
Dormem, sonham esquecem... 
Não me ouves, e prossigo. 

Digo o que já, de triste, 
Te disse tanta vez... 
Creio que nunca o ouviste 
De tão tua que és. 

Olhas-me de repente 
De um distante impreciso 
Com um olhar ausente. 
Começas um sorriso. 

Continuo a falar. 
Continuas ouvindo 
O que estás a pensar, 
Já quase não sorrindo. 

Até que neste ocioso 
Sumir da tarde fútil, 
Se esfolha silencioso 
O teu sorriso inútil. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Não Digas Nada!Não digas nada! 
Nem mesmo a verdade 
Há tanta suavidade em nada se dizer 
E tudo se entender — 
Tudo metade 
De sentir e de ver... 
Não digas nada 
Deixa esquecer 

Talvez que amanhã 
Em outra paisagem 
Digas que foi vã 
Toda essa viagem 
Até onde quis 
Ser quem me agrada... 
Mas ali fui feliz 
Não digas nada. 
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Tenho Tanto SentimentoTenho tanto sentimento 
Que é frequente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal. 

Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada. 

Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
"Esta Espécie de Loucura
Esta espécie de loucura 
Que é pouco chamar talento 
E que brilha em mim, na escura 
Confusão do pensamento, 

Não me traz felicidade; 
Porque, enfim, sempre haverá 
Sol ou sombra na cidade. 
Mas em mim não sei o que há 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
PASSOS DA CRUZ 

Esqueço-me das horas transviadas 
o Outono mora mágoas nos outeiros 
E põe um roxo vago nos ribeiros... 
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas... 

Aconteceu-me esta paisagem, fadas 
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros 
Os céus da tua face, e os derradeiros 
Tons do poente segredam nas arcadas... 

No claustro seqüestrando a lucidez 
Um espasmo apagado em ódio à ânsia 
Põe dias de ilhas vistas do convés 

No meu cansaço perdido entre os gelos 
E a cor do outono é um funeral de apelos 
Pela estrada da minha dissonância... 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Foi um MomentoFoi um momento 
O em que pousaste 
Sobre o meu braço, 
Num movimento 
Mais de cansaço 
Que pensamento, 
A tua mão 
E a retiraste. 
Senti ou não ? 

Não sei. Mas lembro 
E sinto ainda 
Qualquer memória 
Fixa e corpórea 
Onde pousaste 
A mão que teve 
Qualquer sentido 
Incompreendido. 
Mas tão de leve!... 

Tudo isto é nada, 
Mas numa estrada 
Como é a vida 
Há muita coisa Incompreendida... 

Sei eu se quando 
A tua mão 
Senti pousando 
‘Sobre o meu braço, 
E um pouco, um pouco, 
No coração, 
Não houve um ritmo 
Novo no espaço? 
Como se tu, 
Sem o querer, 
Em mim tocasses 
Para dizer 
Qualquer mistério, 
Súbito e etéreo, 
Que nem soubesses 
Que tinha ser. 

Assim a brisa 
Nos ramos diz 
Sem o saber 
Uma imprecisa 
Coisa feliz. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"





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